terça-feira, 7 de março de 2017

Entrevista com Laudo Ferreira Jr. - Múltiplo 2

Entrevistado do Mês: LAUDO FERREIRA JR.
Laudo Ferreira Jr. é um quadrinhista e ilustrador brasileiro. Começou sua carreira em 1983, ilustrando para diversas editoras, além de trabalhar com Publicidade e no desenvolvimento de cenários e figurinos para teatro. Fundou o Estúdio Banda Desenhada em 1996, ao lado de Omar Viñole. Conquistou duas vezes o Troféu HQ Mix: a primeira, em 1995, pela obra “À meia-noite levarei sua alma”, adaptação do filme homônimo de Zé do Caixão. A segunda, em 2008 pela publicação independente “Depois da Meia-noite”, feita em parceria com Viñole. Laudo também ganhou o Prêmio Angelo Agostini de melhor desenhista em 2008 e 2009. Criou personagens inesquecíveis como a Tianinha e Meia Lua, tiras de A Voz do Louco, bem como ilustrou diversos personagens nacionais em capas de revistas, livros e fanzines. Criou a identidade visual da Agente Laranja, sendo o primeiro a desenhá-la em ilustrações e HQs. Hoje tem um blog, o Quadro Imaginário onde publica tiras com a aventura da Jambalaya. Recentemente lançou a revista Cadernos de Viagem, anotações e experiências do Psiconauta e planeja reeditar a Tianinha, com a revista “A Experiência Tianinha”. Nesta entrevista, gentilmente respondida por Laudo, um pouco mais do seu trabalho e vivências no Universo Alternativo de HQs... uma oportunidade ímpar de conhecer mais o grande desenhista LAUDO por ele mesmo... boa leitura...

Múltiplo: Como é ser desenhista no Brasil? Qual o maior obstáculo para o artista nacional?
Laudo: A vida no geral, sempre é feita de obstáculos, muitos ou poucos, depende da história de cada um. Para o artista também. Quando se opta em seguir essa carreira, essa história, a pessoa precisa ter consciência dos problemas que por ventura podem surgir. Não criar ilusões, mas ter absoluta certeza do que quer. É importante o desenhista estar sempre conectado com as coisas, com o mundo, o que permeia a sua área, buscar sempre se renovar. Trabalho como ilustrador há muitos, muitos anos, algumas coisas que eram tabu há quinze anos atrás, já não são hoje. O Brasil sempre foi um “país em crise”, então, sempre foi preciso saber dançar o bailado, para não perder o rumo. O desenhista precisa ser dinâmico, ter um leque interessante de opções para seu trabalho, para poder então oferecer mais. Não adianta ficar só numa tendência, num estilo, acaba restringindo o trabalho.
Enfim, indo para um outro lado, talvez o maior obstáculo para o artista nacional, seja seu próprio ego: há que se tomar cuidado com ele.

Múltiplo: O que tem visto de bom na HQ nacional atual?
Laudo: Muita, mas muita coisa mesmo e acredito que um bom outro tanto que desconheça, não tenha visto. A produção de quadrinhos nacionais deu uma explosão de produção e criatividade nos últimos anos espantosa. Meninos e meninas produzindo, escrevendo, desenhando, editando e publicando com uma qualidade e versatilidade incrível. O panorama de quando eu e uns outros tantos produzíamos para fanzines, anos 80 e 90, definitivamente é outro, o perfil do artista e do consumidor é outro, isso por si só já é fantástico e caracteriza-se realmente uma evolução.

Múltiplo: Tem alguma referência para desenvolver o seu trabalho?
Laudo: Desde lá atrás muita coisa que fiz, principalmente no campo de criar histórias, tinha como referência, base, mesmo inspiração, coisas adversas do mundo dos quadrinhos. Obras como as adaptações dos filmes do Zé do Caixão, “À meia-noite levarei a sua alma” e “Esta noite encarnarei em teu cadáver”, mais recente como “Histórias do Clube da Esquina” e a trilogia Yeshuah e mesmo os bem antigos como “O duelo”, sempre veio de um pensar sobre algo, experimentar ou mesmo buscar algo, compreender alguma questão através do ato de fazer um obra para se comunicar, no meu caso específico, quadrinhos. Foi assim lá atrás em “O duelo” e recentemente em Yeshuah, onde há uma busca pelo entender do sagrado em relação ao homem, ao mundo e dentro de mim, essa busca seguiu um pouco mais adiante no meu último lançamento “Cadernos de Viagem”. Enfim, por aí vai.
Sempre fui muito reticente a autores que buscam referências dentro do próprio universo dos quadrinhos, óbvio que cada um faz o que quer com sua arte e ponto final, porém, é fundamental exercitar a mente na busca de algo mais para si e para entreter as pessoas. Misturar mundos, como música e quadrinhos, como no caso de “Histórias do Clube da Esquina”.
Vale dizer que não existe gênero, linha em meu trabalho, essa consciência me foi dada recentemente, há sim o que eu quero e me disponho a contar.

Múltiplo: Qual personagem, dos que já criou, considera o favorito?
Laudo: Dizer todos é fugir de uma resposta mais específica, mas se for para falar de um só, indubitavelmente foi a Tianinha. Primeiramente pelo longo tempo que a série dessa personagem levou, foram nove anos de histórias mensais publicadas na revista “Sexy Total”, segundo, que havia uma leveza e despreocupação em fazer suas hq’s, suas histórias em que o resultado final era divertido, mesmo tendo roteiros muito simplistas, beirando a bobagem às vezes.
Múltiplo: HQs ou tiras, qual sua preferência? E as charges, desenvolve esse tipo de trabalho?
Laudo: Hq’s sem dúvida. É o meu modo de expressar, de condução de uma história, de mais espaço para mostrar as coisas. Tirinha tem seus limites e suas técnicas, há de se ter um domínio de linguagem de tiras para se fazer e obter um bom resultado. Porém, produzo minhas “tirinhas episódios” para meu blog Quadro Imaginário, como anteriormente produzi as tirinhas do Banda Mamão e lá atrás, bem lá atrás mesmo, teve “A Voz do Louco”, ou seja, mesmo não me julgando um cartunista e um criador de tirinhas, eu sempre e confesso nunca ter pensado sobre isso. O fato é que, as produções das tirinhas de aventura do Quadro Imaginário cumprem duas funções, por se tratar de publicação semanal no blog, com basicamente duas postagens, é um meio de estar conectado com meus leitores, a rapaziada que curte meus quadrinhos, pois às vezes, se for manter esse contato só através dos livros/álbuns lançados, na maioria das vezes existe um hiato de um ano ou mais entre um lançamento e outro. Com a produção semanal das tirinhas, esse contato se mantém aquecido, digamos assim.
A outra função é mais lúdica, digamos assim, que é um exercício constante de criação, em coisas rápidas. Tanto as tirinhas do personagem David Escarlate, como da Jambalaya que venho publicando no blog, são historinhas que seguem um fluxo criativo, ou seja, as histórias vão sendo criadas à medida que vou fazendo, isso por si, já é um tremendo exercício.
Charge fiz pouquíssima, muito pouco mesmo e como trabalho contratado. Aí sim, definitivamente não me enxergo como um chargista. Há muita coisa que torna um desenhista em um chargista que eu não possuo e também não é muito meu interesse como criador.

Múltiplo: Sua atividade hoje pode ser encontrada onde? Tem algum projeto ambicioso?
Laudo: A maioria do material que produzo é vinculado via editora, atualmente a Devir que vem publicando meus trabalhos, como “Histórias do Clube da esquina”, Yeshuah e “Cadernos de Viagem”, então muitos destes livros são acessíveis em livrarias e lojas especializadas.
Não sei te responder dentro do que acredito que me pergunta o “projeto ambicioso”. A trilogia Yeshuah foi um projeto ambicioso em muitos sentidos e acredito ter realizado tudo bonitinho e cumprido minhas expectativas e da maioria dos leitores. Não sei se há projetos ambiciosos pela frente. Há muitas ideias, algumas já em andamento. Não sei se para frente, irei fazer algo do porte de Yeshuah, primeiro, pelo tempo que levei para fazer toda a obra, treze anos, e pela quantidade de páginas, quase quinhentas. Não há “nuvens de inspiração” nesse sentido, sobrevoando minha cabeça. Porém, nunca se sabe o dia de amanhã... ou, parafraseando o título de um filme do James Bond: “Nunca diga nunca”.

Múltiplo: Há alguns anos pude compartilhar suas obras no Múltiplo, dentre muitos personagens, lembro bem de “A Voz do Louco”, o que poderia compartilhar sobre esse e outros personagens criados por você?
Laudo: Confesso a você que não me lembro de muitos, a memória já não é mais uma beleza e principalmente porque sou desapegado à minhas criações, sempre procuro pensar adiante. Mas enfim...
“A voz do louco”, talvez seja minha primeiríssima criação já dentro de um processo de criação adulta, digamos assim, foi feito em início dos anos oitenta, eu com meus quase vinte anos, para um jornalzinho literário completamente libertário, de esquerda, chamado “O espaço”. O nome veio d’uma brincadeira com o antigo jornal de rádio “A voz do Brasil”, já debochando de tudo o que trazia esse título e a questão da ditadura que existia na ocasião, afinal respirávamos ainda o final dela, embora as coisas estivessem mais largueadas. Posteriormente continuei a produzir essas tirinhas, mas com outra conotação: trazia um personagem explicitamente baseado em mim, onde expunha crises e problemas do então um rapaz com seus vinte e poucos anos. Produzi muitas tiras desta fase e publiquei em diversos meios: jornais, inclusive fora do país, fanzines e algumas revistas, como uma do Faustão, que circulou uma época.
Houve outros personagens, como Nico Forte, um picareta, que vivia a fazer seus bicos e sempre se envolvendo em situações complicadas. Fiz umas três hq’s do personagem e o matei numa quarta. Houve a Meia-lua, uma justiceira que entremeava sua luta contra o crime e seu trabalho como stripper. Esta personagem teve uma razoável longa vida, publicada em zines e posteriormente em algumas revistas masculinas. Acredito que devo ter feito umas trinta hq’s, sendo que sua primeira fase, foi desenhada por um jovem que trabalhou comigo chamado Nei Rodrigues.

Múltiplo: Pensa em trazer de volta algum personagem?
Laudo: Acho que não. A Meia-Lua, algumas pessoas já falaram para mim sobre uma possibilidade de fazer novas histórias. Mas confesso ser arredio a trabalhar com personagens tão antigas. Acredito que tiveram seu período e seu propósito naquela época. Minha cabeça, meu pensar quadrinhos e histórias, está sempre em constante mudança e sempre é difícil esses velhos trabalhos se encaixar. Então, prefiro honrá-los pelo que representaram.

Múltiplo: O que a internet facilitou sua produção? E o que prejudicou no desenvolvimento do seu trabalho?
Laudo: Não há prejuízos, acredito. Houve maior divulgação numa rapidez que só a internet possibilita, meu trabalho conseguiu uma maior penetração e um maior número de fãs, o que, claro é ótimo. Desde lá atrás em meados dos anos dois mil, quando produzi a série da Tianinha para revista “Sexy Total” e criei na ocasião um fotolog da personagem que chegou a ter duzentas mil visitações num mês, algo bem surpreendente para época. A internet é uma ferramenta fundamental hoje em dia.

Múltiplo: Prefere trabalhos preto e branco ou colorido?
Laudo: Não há predileções, gosto de ambas as possibilidades. Dependendo muito da linha da hq que vou fazer, tanto se for texto meu como de outro escritor, a ambientação que esta história irá propor vai me dar se ela ficará melhor colorida ou preto e branco. São leituras diferentes, então é preciso pensar bem. Por exemplo, já sugeriram que a trilogia Yeshuah ficaria bonita se colorizada, porém a ideia desta hq foi pensada em preto e branco, há resoluções lá que ficaram fortíssimas porque foram pensadas em preto e branco, diferente por exemplo de “Cadernos de Viagem”, que foi pensada para cor e que tem uma absoluta importância para leitura da hq.

Múltiplo: Como vê a arte dos fanzines? Já publicou algum?
Laudo: Os fanzines tiveram sua relevância como vitrine para toda uma geração, anos oitenta e noventa. Servia como mostruário de produção e análise da qualidade do que se vinha fazendo, e à partir daí o artista ia traçando seus rumos. Para mim foi fundamental, embora nunca tenha produzido o meu, em contrapartida participei de uma infinidade. Para muita gente nesse período, fazer fanzines era uma forma de estar produzindo, tendo em vista a inexistência de possibilidades de publicações via editorial, um panorama bem diferente do que temos hoje em dia e, que praticamente mudou a cabeça dos autores. Há toda uma geração novíssima que vem produzindo um material de altíssima qualidade, tanto na escrita e desenho, como na arte, o que leva uma maioria a se desinteressar em publicar via editora, devido às possibilidades acessíveis de editar e imprimir uma revista, quando a infinidade de eventos de quadrinhos que existem por aí, gerando as alas dos artistas, que ficam vendendo suas publicações.

Múltiplo: O mercado nacional de HQs, o que tem a nos dizer sobre ele? Acredita numa melhora desse mercado?
Laudo: Não existe ainda um “mercado” de quadrinhos, se comparando com o mercado americano e principalmente o europeu, onde mesmo em crise, está muito forte ainda. Mas há uma produção crescente. No evento CCXP deste ano de 2016, a Artist’s Alley estava com 450 artistas vendendo seus trabalhos e, com um grande número de lançamentos. Quer dizer, a coisa tá pipocando, o que se precisa, entre tantas outras necessidades, é encontrar meios para divulgar e distribuir. Quadrinhos é uma forma de arte, mas precisa expandir-se como produto, atingir mais lugares e pessoas possíveis, sair do seu nicho, enfim, muita coisa pela frente. Mas claro, vivemos um momento incrível, se comparado há meu início lá nos anos oitenta e mesmo anos noventa e dois mil.
Por fim, acredito que a coisa ainda vai melhorar mais com o passar dos anos e principalmente se profissionalizar.
Múltiplo: Tem algum grande desenhista / escritor que marcou época nos quadrinhos nacionais?
Laudo: Há um grande número. Difícil indicar um. Para mim, Nico Rosso, foi importante e muito influenciou-me e depois veio Laerte, Angeli e Glauco. Mas há uma geração nova aí, no fervor da coisa que também influencia.

Múltiplo: E a nova geração, tem acompanhado o surgimento de algum novo artista?
Laudo: Tem muita gente aparecendo aí, muita gente talentosa em sua grande maioria e apresentando uma nova cara, uma nova proposta. Não dá para conhecer todos, é um cenário bem amplo. Há uma rapaziada nova na idade, que já está com um certo tempo de estrada e com uma boa quantidade de material publicado. É importante conhecer o que essa rapaziada vem criando, como pensam, o motivo de estarem criando quadrinhos, enfim, se alimentar desse sentimento novo, dessa nova expressão, pois só assim, a gente que tem um tempinho de carreira evolui. Dá para de imediato destacar a postura do “eu faço”, que essa turma nova trouxe que difere muito, por exemplo, de minha geração lá dos anos 80, onde muitos pararam lá, nos dogmas criados naquele período, tanto no que diz respeito ao movimento quadrinístico independente, quanto a postura de criadores de quadrinhos, fora aquela coisa viver a “eterna batalha” pelo quadrinho nacional, um discurso muito, muito desgastado e que definitivamente essa nova geração não tem: eles querem produzir, possuem o talento e vão em frente, publicando em zines xerocados, grafitando, publicando edições bacanas ou fazendo seus blogs na internet. Uma forma atualíssima ensinando a não perder tempo em lamúrias.

Múltiplo: O que você espera dos projetos que tem desenvolvido?
Laudo: Tenho uma visão, um entendimento da relação público leitor com meu trabalho, assim como da crítica especializada com o que faço. Houve um processo longo para isso. Mas resumindo, alguns pontos, não crio expectativas mais, apenas faço. Procuro manter muita coisa num campo superior e não baixa-lo para o racional, pois aí vou querer resultados, vou me mover na trilha das emoções que o ego precisa, aí se coisas assim não acontecem, há uma quebra, uma ruptura e por fim, acaba maculando aquele campo inicial, onde só existia o fazer, pois abandonei isso para pensar nos resultados. Isso acredito gere benefícios.
Mas, falando dentro de um plano “mais real”, digamos assim, alguns trabalhos como a trilogia Yeshuah e “Cadernos de Viagem”, buscam trabalhar com uma outra possibilidade da leitura do pessoal. Sair da casinha, como dizem. Os leitores, e em especial, leitores de quadrinhos, muitas vezes estão viciados e não estão abertos, consequentemente a coisas novas. Mas que fique claro, novas, não no sentido de ineditismo, mas sim, do que pode estar fora, além do que aqui agora tenho.
Múltiplo: Por muitos anos, enquanto estive editando o Múltiplo, recebi diversas colaborações suas, e as vi também em outros fanzines como o Cabal que também está voltando. O que te faz colaborar no universo paralelo? O que o motiva hoje?
Laudo: Você disse bem, por muitos anos colaborei com uma infinidade de fanzines e outros tipos de publicações independentes. Hoje, primeiramente a falta de tempo, não me permite flexibilidades, infelizmente, apesar deste cenário independente ter outra cara hoje. Porém, colaborar com amigos queridos como você, o Clodoaldo do “Cabal”, é outra história, então aí sim, me movo de alguma maneira para que possa participar. Na época em que colaborava com uma sede voraz para fanzines de todo país, existia aquele fato adolescente de produzir, criar, estimular a criatividade e posteriormente compartilhar isso. Então, os zines existiam de braços abertos proporcionando muita coisa. Hoje, participar de uma edição independente tem um outro caráter. Por exemplo, produzi hq’s para as revista independente “Máquina Zero”, da turma do Quadro a Quadro da Bahia, fiz com maior tesão, procurei criar história que mexessem com o leitor e tudo mais. Trata-se, como disse, de um material alternativo, mas que tem uma ótima circulação nacional, através de eventos de hq’s que acontecem no país todo, assim como distribuição em comics shops, ou seja, a coisa é diferente, mesmo dentro do cenário independente do que era a vinte, trinta anos atrás. Então, aquela experiência da época não existe mais, a atual é uma outra história.

Múltiplo: O que prefere criar, humor ou heróis? Ou algum outro estilo?
Laudo: Tenho uma visão, um entendimento da relação público leitor com meu trabalho, assim como da crítica especializada com o que faço. Houve um processo longo para isso. Mas resumindo, alguns pontos, não crio expectativas mais, apenas faço. Procuro manter muita coisa num campo superior e não baixa-lo para o racional, pois aí vou querer resultados, vou me mover na trilha das emoções que o ego precisa, aí se coisas assim não acontecem, há uma quebra, uma ruptura e por fim, acaba maculando aquele campo inicial, onde só existia o fazer, pois abandonei isso para pensar nos resultados. Isso, acredito, gere benefícios.
Mas, falando dentro de um plano “mais real”, digamos assim, alguns trabalhos como a trilogia Yeshuah e “Cadernos de Viagem”, buscam trabalhar com uma outra possibilidade da leitura do pessoal. Sair da casinha, como dizem. Os leitores, e em especial, leitores de quadrinhos, muitas vezes estão viciados e não estão abertos, consequentemente a coisas novas. Mas que fique claro, novas, não no sentido de ineditismo, mas sim, do que pode estar fora, além do que aqui agora tenho.

Múltiplo: O que poderia nos dizer de “Quadro Imaginário”?
Laudo: Primeiramente o nome “Quadro Imaginário” foi dado a um selo do Estúdio Banda Desenhada, meu e do Omar Viñole para publicação de quadrinhos. Neste selo publicamos a minissérie “Depois da meia-noite”, as duas coletâneas de tirinhas do personagem Coelho Nero do Omar e “Questão de Karma” que fiz em parceria com o desenhista Alexandre Santos. Com o final do estúdio, resolvi usar este nome, do qual gosto muito, acredito ter uma magia própria, para batizar um blog onde venho publicando tirinhas de aventuras dos personagens David Escarlate e Jambalaya, semanalmente, todas as terças e quintas.

Múltiplo: A que atribui esse projeto?
Laudo: Inicialmente publiquei uma série de tirinhas do David Escarlate, numa página do antigo site do Estúdio Banda Desenhada. O personagem que claramente fazia uma referência aos clássicos heróis dos quadrinhos de ficção-científica como Flash Gordon e Buck Rogers, em pouquíssimo tempo alcançou um considerável sucesso entre os leitores. Para mim é difícil especificar o que agradou tanto, mas arrisco dizer que o estilo descompromissado das tirinhas, numa levada que remete aos antigos seriados de aventura e ao fato do roteiro seguir um fluxo criativo, ou seja, não existe uma história definida, vou criando a aventura à medida que a vou produzindo, isso por si já gera muita coisa doida, engraçada e bizarra às vezes, deve ter agradado ao leitor. Na sequência criei então “Jambalaya, a Rainha da Selva do fundo do quintal”, que segue o mesmo princípio do fluxo criativo de David Escarlate, porém, com um andamento que lembra as antigas heroínas de aventuras na selva, como Shenna, Jana e tantas outras.
Mas, na realidade, esse projeto de tirinhas aventurescas, como gosto de chama-las, foi criado diretamente para internet, com grande divulgação nas redes sociais, para que o meu leitor, fã de meus quadrinhos, esteja constantemente alimentado com trabalhos meus, mesmo que com petiscos como o caso das tirinhas, pois entre a produção de um álbum a outra, consome-se lá um ano ou até um pouco mais, entre escrever, desenhar e acertar com a editora, e as coisas atualmente são muito rápidas, tem muita coisa acontecendo simultaneamente, então, não dá para deixar o leitor à mercê de minhas possibilidades. Foi dentro deste princípio que dá para namorar com o público com algo eficiente, rápido de fazer e que no geral, a turma tem gostado.
E, por fim, vale dizer que também se trata de um tremendo exercício de criação.

Múltiplo: Nos fale um pouco de seu novo livro “Cadernos de Viagem.
Laudo: Essa hq trata sobre aquelas questões de coisas do passado, da nossa infância, quando alguma bobeirinha acontecida, alguma mágoa guardada no coração de uma criança, fica no coração dela, se aloja e vai crescendo à medida que também crescemos, só que conforme amadurecemos, ela também amadurece e, aquela coisa quase insignificante do passado, acaba então se transformando em um problema maior, um demônio que vai tornando a sua existência adulta difícil, cheia de problemas. Tudo isso é visto através do personagem Miguel, que traz muita coisa mal resolvida de seu passado, onde talvez o mais complicado seja o difícil relacionamento com seu pai. Miguel busca cura, busca melhoras, através do que estiver acessível à suas mãos e principalmente naquilo que seu coração crê. Elementos de rituais xamânicos, por exemplo, ajudam então, a ele fazer um profundo mergulho em si, passando por vários momentos de sua vida, da infância, até a maturidade.
“Cadernos de viagem”, usa um subtítulo de “Anotações e experiências do psiconauta”, pois trata justamente do que Miguel é, o psiconauta, pessoa que faz uso de elementos como plantas de poder (ayahuasca, peyote) e meditação, para expansão da consciência na busca de um aprofundamento espiritual e cura.
A ideia deste trabalho começou a ser elaborada em 2014, se não me engano, logo após o lançamento do terceiro volume de Yeshuah. Foi concebido inicialmente como projeto de série para uma revista eletrônica que acabou não vingando, aí resolvi reestruturar a coisa toda e transformei em “Cadernos de Viagem”. Trata-se de meu trabalho mais pessoal, já que 99% do que é contado é inspirado em fatos que aconteceram comigo e, não escondo isso na hq, em momento algum, a começar pelo personagem, que segundo alguns... rs... tem uma grande semelhança comigo. Foi uma tremenda experiência para mim, principalmente como contador de história, pois buscar coisas lá do passado, transformar essas coisas em história, desenha-las, foi um pouco difícil em alguns momentos, porém o efeito final foi incrível. Consolador. Assim como foi com Yeshuah, este também foi uma experiência única.

Múltiplo: Que mensagem poderia nos deixar sobre a HQ nacional e para os que estão começando a trilhar esse caminho?
Laudo: Não há muitos discursos... acho que é primeiramente confiar absurdamente em você, no que quer fazer e se jogar, deixar as experiências virem, as experiências do criar. Saber direitinho o que quer e ir nisso. Vivemos um grande momento dos quadrinhos nacionais, que obviamente está ainda em crescimento, pois muita coisa ainda vai e precisa acontecer, então é estar atento a tudo e não perder o foco.

Múltiplo: Tem algum hobby além dos quadrinhos?
Laudo: Desenho o dia inteiro. Sou obcecado mesmo. Não tenho muitos hábitos paralelos. Vivo quase que o tempo todo para desenhar e escrever, salvo, claro, quando faço meus programas com minha família. Não tenho hobby. Quando estou no dolce far niente , gosto de ler, leio muito, livros, quadrinhos, mais livros.

Múltiplo: Se pudesse dar vida a um de seus personagens, qual seria?
Laudo: Não sei... nunca pensei nisso... não me vejo “um criador” de personagens, embora tenha alguns... por isso nunca pensei na questão... não tenho muito um raciocínio sobre o perfil de alguns de meus personagens para pensar neles como seres reais... fico devendo essa.

Múltiplo: Se tivesse um desejo a ser realizado, qual seria?
Laudo: Posso parecer um chato relacionando essa pergunta a anterior, mas não tenho “sonhos”, vivo meu dia a dia, tocando as coisas e acreditando. Claro, existem aquelas questões pessoais, um futuro tranquilo e saudável para minha família, ver meu filho se tornar um homem de verdade, justo, honesto e sabendo de seu caminho, essas coisas. No que se refere ao campo das artes, do meu trabalho, tudo está certo.
Talvez... num âmbito maior... um desejo de paz... paz pra todos... menos ego... menos conflito... menos intolerância.

Múltiplo: Quem é o Laudo, dos quadrinhos e da vida real?
Laudo: Na real, um homem completamente pacato, que ama ficar em casa, lendo seus livros, curtindo o filho, a esposa. Nos quadrinhos, um criador, que cada vez mais quer ultrapassar os seus limites e os limites das coisas óbvias que às vezes os quadrinhos trazem.
Na real e nos quadrinhos, um cara de fé.

Múltiplo: Quer deixar algum recadinho, opinião, divulgação?
Laudo: Recadinho: adiante... sempre...
Divulgação, meu blog das tirinhas (http://quadroimaginario.blogspot.com.br ) e meus livros, que estão à venda nas “melhores livrarias do pedaço”...

Múltiplo: O que é o projeto Tianinha? Como se desenvolveu e como está hoje?
Laudo: No ano 2000, vinha trabalhando com a revista “Sexy” esporadicamente fazendo algumas ilustrações, na ocasião a revista passou a contar com a colaboração do editor Licínio Rios (que tinha sido o primeiro editor da revista e um de seus criadores) que criou uma outra versão da “Sexy”, num formato menor e um preço super barato, se chamou “Sexy Total”. Uma das ideias para secções fixas da publicação, era criar uma série de hq’s fechando cada edição. Eu e Licínio já éramos amigos há bons anos, já tendo trabalhado com ele em outras publicações. Numa reunião na editora me propôs criar uma personagem que se chamaria Tianinha. Sua concepção era que a personagem fosse uma típica “loira falsa”, tão em voga na época, como a Carla Perez, que então fazia sucesso. Propôs inclusive que a personagem tivesse uma raiz do cabelo preta denotando mesmo ser uma loira falsa.
Uma semana após essa reunião, eu e Licínio nos sentamos novamente e propus algo diferente: sugeri que a Tianinha fosse uma loira de verdade, gostosa, porém, numa pegada bem próxima a realidade, ou seja, que os leitores a identificassem com qualquer loira gostosa da vida real. A série começou timidamente e com roteiros básicos dentro do gênero erótico, ou seja, a personagem transando com entregadores de pizza, com encanadores, síndicos e coisas desse tipo. Porém, aos poucos e muito graças à internet, que na época começa a crescer, pude notar o quanto a personagem vinha se tornando popular, muito mesmo, então, aos poucos resolvi tomar completamente as rédeas da personagem e criar histórias mais interessantes, com pegadas mais engraçadas, que lembrassem as antigas pornochanchadas dos anos 70 e coisas desse tipo. Aí, a coisa estourou de vez.
A série da personagem contou com nove anos de produção mensal ininterrupta, três edições especiais e uma outra série da personagem publicada na revista “Sexy Premium”. Quase duzentas hq’s produzidas ao todo. Em 2009 a série foi cancelado, por causa do cancelamento da própria “Sexy Total”, devido à queda de vendas das publicações masculinas. Ainda hoje muitos leitores sentem saudades da personagem e cobram alguma republicação.
Esse ano o Instituto HQ, escola de artes e editora, localizada aqui em São Paulo e de propriedade do desenhista Klebs Jr. propôs uma edição compilando algumas de suas hq’s da personagem, e por fim, julguei que talvez fosse a hora de trazer a personagem de volta, pelo menos numa coletânea e aí surgiu “A experiência Tianinha”, que num primeiro momento seria lançada durante o CCXP – Comic Com experience “ deste ano, mas ficou para fevereiro de 2017.
Tianinha é uma personagem que tenho imenso carinho e, muito provavelmente seja a personagem que criei que mais tenha tido sucesso, sucesso de verdade mesmo, atingindo um imenso público, masculino e feminino também. Apesar dela transitar dentro de um gênero de hq’s à princípio masculino, o dos quadrinhos eróticos, Tianinha traz uma total liberdade de ser, fazer o que quiser sem culpa nenhuma, ela é dona da situação e não um simples boneco sexual. Essa postura acabou agradando muitas garotas e isso claro, muito me agradou também, pelo fato de perceber que um trabalho totalmente descompromissado, tenha atingido muita gente.
Com o lançamento desta coletânea em 2017, cogitou-se de eu voltar a produzir as hq’s da Tianinha, ou pelo menos um álbum. A ideia está muito forte na minha cabeça, vamos ver.

Múltiplo: Nos fale um pouco sobre YESHUA, o que é e como você o vê.
Laudo: Yeshuah, sem dúvida é o trabalho mais importante de minha carreira, pelo menos até o momento. O mais conhecido, o que mais teve elogios da crítica especializada, o que mais gerou identificação de público, embora muita gente tenha torcido o nariz, os religiosos radicais de plantão. Foi uma profunda experiência pessoal e de criação, tanto no campo dos desenhos, como no conceitual e roteiro. Já foi mais que comentado, falado, que o processo todo, entre criação, desenhos, roteiro e publicação, somou treze anos, ou seja, começou em 2000 e terminou em 2013. Ele traz o ápice de algo que sempre foi marcante em meus quadrinhos, em muitos, que é a questão da espiritualidade, o sagrado, a busca humana. Isso já havia sido explorado antes, de uma maneira bem primária ainda em obras como “O duelo”, “Depois da meia-noite” e em quadrinhos curtos como “Quando se está só”. Em Yeshuah, a proposta foi entrar de cabeça e para isso, pesquisei muito, li muito livro sobre o assunto Jesus, fiz muitas práticas, meditações, conversei com teólogos e estudiosos, enfim, muita coisa, que hoje em dia torna-se muito difícil de explicar, pois acabou se amalgamando em minha cabeça. Uma profunda imersão.
Yeshuah basicamente conta a história de Jesus sobre uma outra perspectiva, um pouco mais realista, porém em hipótese alguma nega o mistério do sagrado que está acontecendo junto com o desenrolar da história. Mas o mistério, a incompreensão do que vem a ser tudo, mesclada com a questão humana e histórica, é o tom que guia as quase quinhentas páginas desta hq.
Hoje, passados dois anos do lançamento do último livro da trilogia e mesmo tendo o lançamento da belíssima compilação “Yeshuah absoluto”, olho com o coração para esse projeto, pela sua imensa e fundamental importância que teve na minha vida e na minha carreira, um divisor absoluto de águas. O saúdo, o reverencio e principalmente o agradeço. Porém, minha alma sempre quer ir em frente buscando novos horizontes, novas possibilidades e isso muito me instiga. Já me perguntaram várias vezes se eu pretendo fazer outro Yeshuah e respondo “para que, se já fiz um? Está tudo lá, pra que mais? ”.

O objetivo é ver o que vem pela frente, na vida e na arte.

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